Quando o silêncio guia – As Crónicas das 17h
Nem sempre é preciso ver para seguir em frente.
A Marta aprendeu cedo que o mundo tem sons que os olhos não captam. O estalar das folhas no passeio, o arrastar discreto de uma cadeira de café, o riso de alguém que não se vê mas que se sente perto, tudo isso lhe desenhava o mapa do dia.
Há quem a veja com a Lira, a cadela-guia de pêlo dourado e paciência infinita, e pense que a história é sobre dependência. Mas, na verdade, é sobre liberdade. A Marta não vê, pelo menos, não como a maioria. E no entanto, é ela quem percepciona o que muitos ignoram: o ritmo da cidade, o cheiro do mar ao longe, a textura das vozes.
Todos os dias, faz o mesmo percurso até ao trabalho, um caminho cheio de obstáculos invisíveis para quem vê, mas bem reais para quem sente. A Lira guia-a com precisão, desviando-a de caixotes, degraus e distrações humanas.
Mas há dias em que a Marta sai sem a Lira. Não por descuido, mas por desafio.
“Hoje é o meu dia de confiar no som das ruas”, diz sempre, antes de fechar a porta.
Segue o som dos carros a arrancar, o eco dos seus passos nas paredes. São pequenos milagres do quotidiano, invisíveis, mas monumentais.
É rotina, treino, e uma vontade quase teimosa de não ser definida pela falta de visão, mas pela clareza com que escolhe viver.
Quando chega ao trabalho, há sempre alguém que se espanta:
— “Vieste sozinha? Sem a Lira?”
E ela, com um sorriso sereno, responde:
— “Não sozinha. Vim comigo.”
Nesse instante, percebe-se que a superação nem sempre é um salto heroico às vezes é apenas a persistência silenciosa de quem não desiste de ocupar o seu espaço no mundo, um passo de cada vez.
Os nomes são alterados mas a história é real.

